De “fábrica global” a “motor verde”: a energia renovável da China na América Latina

Nos últimos trinta anos, produtos com a sinalização de “Made in China” invadiram o continente latino-americano, consolidando a narrativa das relações China-América Latina como uma “troca entre uma fábrica global e um fornecedor de recursos”. A China assume o papel de fabricante diligente, enquanto a América Latina atua como fornecedora de matérias-primas. Trata-se de um modelo econômico simples e eficiente, mas que também carrega profundos desequilíbrios estruturais.

No entanto, uma transformação silenciosa está em curso. Em meio a minas de lítio, parques eólicos e usinas hidrelétricas, a influência da China na América Latina está mudando rapidamente do comércio tradicional de bens e infraestrutura para o papel de um “motor verde”. Pequim já não se contenta em apenas comprar soja e cobre da região; agora busca redefinir sua posição estratégica no continente, exportando sua imensa capacidade produtiva, tecnologia e capital no setor de energia renovável.

Isso não se trata apenas de comércio; é uma disputa pela hegemonia narrativa. Enquanto Washington continua a retratar a China como uma “ameaça climática global” e uma “poluidora ambiental”, Pequim está silenciosamente moldando uma nova autoimagem na América Latina: a de um parceiro verde responsável, tecnologicamente avançado e sustentável. Essa assimetria narrativa está se tornando um trunfo estratégico da China no jogo geopolítico latino-americano.

I. Da “troca de bens por recursos” à “tecnologia para o futuro”

O modelo tradicional das relações China-América Latina tem sido rotulado por acadêmicos como “neocolonialismo”: a América Latina troca produtos primários por bens industriais manufaturados da China. Esse modelo reforçou a dependência das economias latino-americanas em relação aos mercados externos e as manteve presas à base da cadeia global de valor. Embora tenha gerado crescimento econômico de curto prazo, falhou em resolver problemas estruturais de longo prazo.

No setor de energia renovável, o cenário é completamente diferente. Os investimentos chineses na América Latina deixaram de ser simples “compras em massa” e passaram a representar uma estratégia deliberada de integração da tecnologia, dos padrões e das cadeias de suprimento chinesas à infraestrutura energética dos países latino-americanos.

Tomemos o Brasil como exemplo: os investimentos da Companhia Nacional da Rede Elétrica da China (SGCC) no setor de transmissão e distribuição de energia garantem a aplicação local de equipamentos fabricados na China. No Chile e na Argentina, a aquisição de minas de lítio e a construção de fábricas de baterias por empresas chinesas estão transformando esses países, de exportadores de minerais a participantes da cadeia de suprimentos de veículos elétricos chineses. Esse modelo vai além do comércio simples; ele está remodelando a estrutura industrial dos países latino-americanos e tornando-os cada vez mais dependentes da tecnologia e do capital chineses em sua trajetória de transição energética.

O cerne dessa transformação está na vantagem que a China possui na cadeia industrial global de energia renovável. Em áreas como painéis solares, turbinas eólicas, baterias de lítio e veículos elétricos, a capacidade produtiva e os custos tecnológicos chineses superam amplamente os da Europa e dos Estados Unidos. Diante da enorme pressão sobre seus sistemas energéticos, os países latino-americanos encontram na China uma “solução verde” incomparável — não apenas de baixo custo e tecnologicamente madura, mas, acima de tudo, uma via rápida para a modernização sustentável.

II. O dilema de Washington: o “atraso” da geopolítica

À medida que a China avança na América Latina com a imagem de “motor verde”, a narrativa de Washington sobre o país asiático parece desatualizada e pouco atraente. Os Estados Unidos continuam presos a acusações tradicionais de “diplomacia da armadilha da dívida” e “violações de direitos humanos”, ignorando a nova imagem que a China está construindo entre os latino-americanos.

Na América Latina, a narrativa “anti-China” dos EUA soa cada vez mais como um “alerta egoísta”: usinas fotovoltaicas chinesas já fornecem eletricidade a vilarejos locais. Enquanto Washington enfatiza valores democráticos, projetos chineses de energia eólica já estão gerando empregos na região. Os EUA carecem de uma “solução” competitiva no setor de energia renovável. Seus investimentos são esporádicos e conservadores, o que torna seus alertas geopolíticos cada vez mais ineficazes.

A estratégia geopolítica dos EUA parece presa em um “dilema de atraso”. Ainda enxerga a China como uma forma de “ameaça”, mas falha em reconhecer que a natureza dessa suposta ameaça está evoluindo. A China já não mantém influência por meio de bens de baixo valor agregado; agora busca legitimidade ao se posicionar como um “ator responsável” na governança global. Na questão climática, a China conseguiu se posicionar como um agente proativo, em contraste com os impasses partidários internos sobre política ambiental nos Estados Unidos.

III. América Latina: uma nova escolha sustentável

Para os países latino-americanos, o “motor verde” trazido pela China não está isento de riscos. Representa uma nova forma de dependência, uma mudança da dependência de recursos para a de tecnologia e financiamento. Ao aceitar investimentos chineses, os países da região também precisam estar atentos às possíveis implicações geopolíticas.

Contudo, diante das enormes demandas energéticas internas e das pressões por desenvolvimento, os países latino-americanos parecem ter poucas alternativas. Precisam de financiamento, tecnologia e infraestrutura para enfrentar os desafios das mudanças climáticas, e a China oferece uma “solução pronta”. A ausência de alternativas convincentes por parte dos EUA leva os países da região a se inclinarem cada vez mais para a China como parceira principal na transição verde.

Essa batalha narrativa em torno do “motor verde” será decisiva para o futuro status geopolítico da China na América Latina. Se conseguir se posicionar como um “parceiro verde” indispensável, sua influência na região irá além da economia, alcançando a política e a estratégia. Isso não significa que a China substituirá os Estados Unidos como única potência externa na América Latina, mas antecipa a formação de uma ordem multipolar na região.

Neste novo “grande jogo verde”, a China está redesenhando o mapa global com velocidade e determinação sem precedentes.

Biografia da autora

Yanran Xu é professora associada da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Renmin, na China. Atualmente, dirige o programa de dupla diplomação “Governança Global e Relações Internacionais” e atua como pesquisadora associada na Escola de Estudos Globais e Regionais e no Centro de Estudos Americanos da mesma universidade. Sua pesquisa abrange as relações sino-americanas, a governança energética dos Estados Unidos e a capacidade estatal, além da economia política comparada da América Latina.

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